Trecho da carta de Maitê Proença
Sobre meu bisavô, Antonio Firmino de Proença, lembro-me de minha mãe comentando que era um homem das letras com livros publicados, que havia um busto dele em alguma praça de SPaulo. Essa parte me impressionava muitíssimo, e nem sei se é fato ou se a história cresceu na minha imaginação, desde cedo bastante fértil (seriam eflúvios criativos herdados do bisa e de mamãe?). Não cheguei a ver o tal busto, mas, é verdade que passados tantos anos, provável que não esteja mais onde esteve um dia. Vá saber... Como Antonio Firmino, minha mãe Margot soube combinar o magistério com o trabalho na administração pública. Foi professora de filosofia, do Colégio Culto à Ciência; professora de música, num ginásio estadual; dirigente de ensino e, por um período, ocupou o cargo de secretária de cultura da cidade de Campinas. A seu respeito, registrei no livro Uma vida inventada (Agir, 2008):
"Minha mãe foi uma mulher extraordinária. Era alegre, vibrante, gostava de brincar, dançar, falar, e era muitíssimo inteligente. Não conheço uma pessoa que a tenha conhecido que não se recorde dela com entusiasmo. Margot era professora de filosofia, e seus alunos viviam passando lá em casa para estar com ela também no dia-a-dia. Mais tarde, acumulou a função de secretária de Cultura de Campinas, onde vivíamos, e com isso nossa casa virou palco para ensaios de ópera, da orquestra municipal, e para toda manifestação artística que estivesse precisando de espaço.. A casa era grande, e assim foi virando uma espécie de depósito das obras de arte que aguardavam exposições – eram telas e esculturas de toda sorte encostadas pelas paredes das salas e dos quartos. Lembro-me de um galo de ferro esquisitíssimo que passou um par de meses ciscando pela cozinha. Peças estranhas era o que mais havia, e eram essas que mais chamavam a atenção. Eu parava diante delas por dias, até que se tornassem bonitas, ou feias – em geral o processo demorava para acontecer dentro de mim, e eu gostava de sentir a evolução, como se a própria peça estivesse, fisicamente, se transformando na minha frente. Por conta desse contato, resolvi pintar. Margot me deu uma caixa com tintas a óleo e várias telas. Pintei, pintei, pintei, e pedi outras telas, mas ela sugeriu que eu improvisasse com novos materiais. Quando acabaram-se os troncos do jardim, as cartolinas e as caixas de papelão, decidi, de pirraça, pintar a parede do quarto. Fiz um troço feio, em relevo, roxo e preto, e levei minha mãe para ver. Ela examinou aquilo em silêncio por alguns minutos e com a voz mais tranquila do mundo disse:
– Há muito tempo não vejo coisa tão bonita!
Tive de conviver com aquele pavor por uns bons meses. As telas só vieram depois."
Maitê Proença